Estrelas

sábado, 24 de julho de 2010

Reencontro


Não sei se isso é característico das famílias portuguesas, mas na minha todas as mulheres e quase todos os homens têm nomes próprios compostos. Da minha geração, apenas os do irmão mais velho e da irmã caçula são inseparáveis: 'Toniocarlos' e 'Anacarla'. Os demais, quando se ouvia alguém os chamando pelos dois nomes, geralmente o tom estava a anunciar um iminente esporro. "Cristiane Maria, isso lá é hora de acordar????", "Carlos Eduardo, já para o banho!!!", "Raquel Cristina, deixa de ser malcriada!!!!"

Raquel Cristina. Esta foi a filha, neta, afilhada, sobrinha, prima, sonho de consumo de toda a família. Aprendera a ler aos 04 anos de idade, quando sua coordenação motora a habilitava apenas para bolinhas coloridas. Inteligente, quase uma cdf (cdf igual a nerd), não dava trabalho e vivia para os estudos. Lia muito, tudo o que estivesse ao seu alcance, apesar desse tudo ter sido bastante limitado pelas circunstâncias.

Questionava o que não entendia, e o que entendia também, e tinha sempre uma resposta, por vezes não muito carinhosa, na ponta da língua. Argumentos não lhe faltavam e até o Sr. Santo Padre era interrogado. Era a 'geniosa', a de personalidade forte, a marrenta. Quando contrariada, ficava emburrada, fazia bicos, pisava forte, batia as portas. Mas nada além disso. E os olhos - olhos de gata 'braba' - sempre brilhantes.

A Raquel Cristina sempre foi intensa; às vezes dramática, mas sempre intensa. Como naquela tarde em que meu padrinho, a quem eu amava como pai, retornou de uma viagem que fizera sem de mim se despedir. Estava brincando com algumas crianças quando inexplicavelmente senti uma enorme alegria invadindo aquele coraçãozinho de menina, que não conseguia entender o porquê das lágrimas. Virei-me para o portão e lá estava ele, com aquele sorriso lindo estendendo os seus braços para mim. Eu não sabia que ele estava para voltar e nem se ele voltaria algum dia para o Brasil. Ninguém sabia. A emoção foi tão grande que por segundos me paralisou. Queria correr, mas não conseguia. Quando senti que as pernas tinham me obedecido, já estava agarrada em seu pescoço, e chorava compulsivamente. Parecia que o mundo havia parado. E parou mesmo.

Tinha horror aos afazeres domésticos (fala sério, vida doméstica, como Martha diz, é para os gatos...), por isso, para fugir dos mesmos, Raquel fingia estar estudando para poder ler sossegada os seus gibis, escondidos dentro dos livros escolares. Mas as irmãs sabiam e por vezes a entregavam à mãe, que, na sua sabedoria a aplacar os ânimos exaltados, soltava um "Raquel Cristinaaaaaaa!!!!", para em seguida esboçar ainda que sorrateiramente um sorriso de orgulho.

O tempo passa. As mudanças são inevitáveis. Num mesmo ano, vestibular, namorado, Raquel Cristina universitária e professora de inglês. Uma menina que usava saltos altos, enchimento nos seios e maquiagem para fingir ser mulher e impressionar. Quem??? Não o primeiro namorado, mas aquele que a fez sonhar durante lindos sete anos, seu primeiro grande amor. Era um homem incrivelmente irresistível, e terrivelmente manipulador. Mas foram anos muito felizes, durante os quais mantivera-se contestadora, inovando, criando, crescendo como ser humano. Tornou-se uma profissional competente e querida. E os olhos ... brilhantes, como sempre.

O tempo passa. As mudanças são inevitáveis. Aquele primeiro grande amor virou amizade e...se foi. Veio um segundo grande amor, que também durou seus quase sete anos, que também virou amizade e...se foi. Não, nada foi simples assim. Houve muita dor, as tão faladas dores do crescimento. Afinal, somos de fato livres quando desejamos, mas por inúmeras vezes, cegos, nos tornamos escravos desses mesmos desejos, obcecados pela idéia de que, se não os realizamos, somos verdadeiros fracassos.

Ora, tuda muda o tempo todo no mundo, não é assim que se canta??? Os desejos podem mudar, se transformar. É claro que toda e qualquer mudança gera necessariamente uma perda, como me ensinou meu caro amigo do Do lido ao vivido. Deixei de ser uma brilhante professora de inglês, ganhando um salário de miséria, para me tornar uma profissional medíocre na área jurídica, por um salário melhor. Precisamos fazer opções, mas não queremos abrir mão de nada. Ninguém quer perder, ninguém gosta.

Já no terceiro grande amor e já marcada pelas frustações nossas de cada dia, Raquel precisava fazer alguma coisa 'de bom' e passou a desejar muito formar sua própria família, o que conseguiu tornando-se a Sra. Jacoub. Raquel Jacoub, a esposa 'linda', porém não tão dedicada; a nora, não a desejada; a cunhada não muito paciente;e a mãe, ah, esta sim, totalmente realizada, pois que tinha dois verdadeiros anjos a lhe sustentar. Pelos olhos de outrem, tinha conquistado a vida desejada por todos. Mas era essa a vida que a Raquel Cristina queria? Aqueles desejos eram os seus próprios? Não perguntava, porque não queria ouvir as respostas. A Raquel ganhou o Jacoub...mas perdeu a Cristina (combinação feia esta, dizia). E perdeu muito. Seus olhos não brilhavam mais. Viver não é fácil.


E as mudanças? São inevitáveis, por isso o tempo passa. Há até quem diga que é possível adiá-las. Tolice. Elas só acontecem quando têm que acontecer. E a Raquel, em meio a rompimentos, sofrimentos, caos, não conseguia se encontrar mais. Precisava ser resgatada. Sim, um novo amor. "Ele" a encontrou e segurou nas suas mãos. Eterno complexo de cinderela.

"Dessa vez vai ser diferente, nunca mais vou deixar de ser eu mesma", pensou. Mas quem a Raquel era agora? Não sabia que já não a conhecia mais. Passou a contestar indiscriminadamente o que via e o que não via; o que sentia e o que não sentia. Pobre príncipe, foi transformado em sapo. Corria atrás de um tempo que achava perdido, ainda estava cega e pesada demais. Então, mesmo intensamente vivido, esse amor não conseguiu sobreviver. Foi então que a Raquel descobriu que tempo é uma mera definição; que é gerado por elas, as inevitáveis mudanças, e que somos nós o sujeito ativo e passivo de nossos resgates.

Há pouco mais de uma semana, voltava de um shopping dirigindo meu carro quando ouvi uma voz nítida e clara me chamando: "Raquel Cristina". Sabe aquela emoção que descrevi há pouco, quando reencontrei meu padrinho ainda menina??? Pois é, ela mesma. Não, não me abracei e rodopiei. Apenas sorri, e chorei, feliz. Olhei-me no espelho do carro. Vi meus olhados molhados, verdes e brilhantes. Ela estava aqui o tempo todo, a Raquel Cristina. Não é lindo o meu nome??!!!

2 comentários:

  1. Prazer, Raquel Cristina, Claudio Henrique!!! Adorei seu blog!

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  2. Oi Raquel!

    Sou o Ivan do Reino Lúdico. Vim aqui para agradecer a visita, as palavras gentis, e o fato de você ter compartilhado do dia em que fez um passageiro de busão feliz. Sabe, eu sou um relapso quanto a visitar, e ainda mais, comentar em outros blogs. Não é que eu me recuse a isso. Eu apenas sou relapso. Tá, tudo bem, é bem verdade que trabalho muitas vezes 14 a 16 horas por dia, e aí quando eu acho uma janela, eu escrevo, e isso me faz feliz.
    Fiquei surpreso com o seu post porque ele resume muito da sua vida, e assim você se deu a conhecer em muitas coisas para mim. Não bastando o fato de eu saber logo de cara que você era conterrânea quando li a palavra 'roleta'... onde mais se chama a tal catraca [aqui em Curitiba] de roleta? Pô, show de bola.
    Enfim, querida, são 7:39 da manhã, e mesmo sempre acordando cedo, raramente estou escrevendo, e muito menos comentando, tãoooo extensamente em blogs alheios.. rs

    Obrigado por dividir, e parabéns por ter encontrado novamente Raquel Cristina.


    Beijocas.

    Ivan, somente Ivan.

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