Estrelas

domingo, 14 de agosto de 2011

Saudades suas


" Tá vendo, Seu Antonio, eu dou o dinheiro e ela (a mãe) é quem ganha o beijo!"

(risos, muitos risos)

"Ele quer um beijo????" Pensei, assustada com aquela possibilidade. Afinal, ele sempre foi tão austero, sempre guardou os raros momentos de afeto para o que chamava de datas adequadas, como se carinho tivesse hora e local marcado para se dar ou receber...Mas enfim, eu sabia que tanta austeridade escondia apenas a sua incapacidade de demonstrar amor através de qualquer contato físico. Não era sua culpa. De ninguém. Não lhe fora ensinado. Havia outras formas do seu amor se manifestar. Cuidados, responsabilidades, sacrifícios, doação, generosidade. Faltava o toque, mas não os olhares de aprovação, por vezes substituídos por aquele sorriso torto e sincero. Dizem que a perfeição, por não poder ser alcançada, é imperfeita. Bobagem. Pra mim, a imperfeição é que é perfeita.

Dei-lhe o beijo, e ganhei um abraço apertado. Mas nos abraçamos de forma diferente. O beijo e o abraço seriam os últimos. Não que isso fosse fazer alguma diferença na falta que viria, mas era como se ele soubesse que estava se despedindo. Eu não estava lá, no seu último ato, mas tive a minha última cena com ele. Poucas horas depois, um descuido faria com que aquele dia nem tão comum deixasse de sê-lo. Tantos mil volts modificaram a minha vida irremediavelmente.

Rostos conhecidos, olhares de comoção na minha direção, parecia que a cidade em peso estava no pronto socorro. Foi quando ouvi aquela maldita frase: "Morreu trabalhando". Que ousadia aquele vizinho fofoqueiro filho da puta querer ser o primeiro a me dar a notícia. Eu o odiei por muito tempo, aquele idiota, tadinho. É, fui a última a saber, tantas horas depois. Eu, que lhe era a favorita. O que se seguiu não difere em nada das demais tragédias alheias. Lágrimas, lamentações, desmaios, flores, dor. A dor que não passa. Nunca. Fica anestesiada. Recebe apelidos, como saudade. A sua, a dele, a minha, a que me inspira agora. Cada um com sua forma de lidar com ela, a certeza unica que nos é permitido ter.

Só conseguimos voltar para casa alguns dias depois de tudo. Alguém me entregou uma sacola de supermercado e nela estava a camisa que ele vestia na hora do acidente no terraço, um prêmio de consolo por ter sido a última a quem lembraram de avisar. Uma pequena mancha de sangue na gola, rasgos abaixo da pala, em tiras. Eu a queimei em frente à nossa casa. Não sei se sei, mas sei que ele estava ali, naquele momento. Como também esteve no meu quarto, enquanto eu pensava dormir, naquela primeira noite da sua ausência. Eu o vi, eu o toquei, e ainda posso sentir a sua barba 'por fazer' na minha mão e ouvi-lo dizer com o seu olhar, 'shhhhhhhh' , fique bem, estou aqui". Desde então percebi que sonhos, pelo menos os meus, são muito mais que...sonhos. Como toda ausência, a dele nos custou muito. Mas, quando não há nada a fazer, tudo passa. Porque o tempo, já sabemos, não para. Fica apenas o que o coração determina, e fica vivo, e pulsa junto com ele, mesmo que faça doer. Mas fica.

Estava em Penedo dia desses quando encontrei Cacildinha, e me lembrei daquela tarde em que, chegando em casa, avistei de longe sua kombi na calçada. Suas Kombis, amadas tal como amantes, suas paixões. Escorpiniano é foda. Pelo menos àquelas (as kombis) ele era fiel. A última era toda bege. Ainda é. Danei a correr, hipnotizada, sem pensar nem respirar, coração na mão, até chegar nela, até tocar nela, como num abraço, com rosto, com lágrimas. Quis encontrá-lo sentado à mesa, contando a féria do dia, ou me esperando para que a sua filha dileta aqui passasse a sua camisa, ou cuidasse daqueles pés tão castigados pelo cimento das massas que ajudava a revolver, para cobrir as lajes protetoras do seu lar, ou vestir os tijolos que se erguiam em paredes que nunca paravam de subir. Ou, ainda, ouvindo-o discursar sobre as hoje 'bolas cheias' e 'bolas murchas' dos jogadores do seu time paixão, meu também. Eu o entendia, falávamos a mesma língua. Nossa, como sou feliz por tê-lo tido em minha vida...

Ontem ouvi de um personagem qualquer que o amor é frágil. Concordei no instante, mas logo pensei, o amor não supera tudo? Não resiste até mesmo à morte? Ou será apenas esse romantismo recalcado que nos embaça? Não, o amor certamente é forte. Se é frágil, não é amor. Matemático. Simples. Quem dera. Pra que saber? Poder senti-lo é o que deveria importar. Seja por uma vida inteira. Seja num espaço desse tempo inventado, que nos desafia e tem a exata importância que damos. E se quando o sentimos, queremos possuí-lo, é por medo de aceitar que naõ existe o pra sempre, mas somente o até que... É isso o que dói.


Eu não podia deixar a Cacildinha, orfã, na vitrine daquela loja...
Ela não ficou linda na minha sala???




Foi mesmo uma pena não ter passado mais tempo com meu pai, mas me faz bem imaginar que teríamos sido muito felizes. É assim que mantenho as pessoas que estão tão longe sempre perto de mim...